Artifícios indigestos: técnicas de perturbação na barriga do monstro
Uma defesa dos arranjos que causam desarranjo

Dia 28/11, quinta-feira passada, eu e Bruno demos início aos Estudos do bicho e da máquina com o encontro Faunalia Artificialia. A ideia surgiu durante conversas em que, apesar de enquadres muito diferentes, algo persistia em passar de um para o outro: o desejo de troca, de debate, de transformação. O desejo pela diferença que faz diferença.
Antes de relatar como foi o encontro, quero pontuar alguns pressupostos, fundamentos e intenções. Parece-me que, cada vez mais, e de forma acelerada, decidimos de antemão quem são nossos aliados e inimigos, quase num movimento schmittiano e baseados em critérios profundamente morais. Queremos estar do “lado certo” junto às “pessoas certas”; do lado do “bem”, entendido como algo universal, absoluto, puro. Ser “bom” parece, então, um efeito de gostar dos “bons”. Há algo aí que me incomoda, seja na reivindicação desse “bem”, seja na vontade de pureza.
Pergunto-me: como atuar pelo meio? No meio, por meio do meio, em direção ao fora, como nos exorta Isabelle Stengers, pensadora da desaceleração e da hesitação, que também adverte sobre o quanto a vontade de pureza mata a política. Pensar pelo meio, em filosofia, nos obriga a sair em visita, a recuperar a situacionalidade das questões e conceitos e a recusar tomá-los como dados.
Também lembro de Donna Haraway, que nos diz que habitamos a barriga de um monstro e sugere que atuemos no sentido de produzir indigestões gerativas — diferenças que fazem diferença, em termos batesonianos. Estar na barriga de um monstro significa não apenas estar dentro de um sistema vivo e dinâmico, mas também ser sujeito aos processos de assimilação, metabolismo e rejeição que ocorrem nesse ambiente. Esse sistema é regulado por loops de feedback que mantêm sua homeostase — seu equilíbrio interno. A figura do sistema digestório de um monstro traz consigo o caráter de quimera e de terror. Criar indigestão, portanto, é um chamado a desregular esse sistema - por excesso (overload), por incompatibilidade (algo intragável) ou por perturbações que o desestabilizem.
Atuar politicamente nesse enquadre, criando diferenças que fazem diferença, diria respeito a estimular a emergência de perturbações capazes de levar o sistema a reajustar-se — algo que o capital não cessa de fazer — ou colapsar. Se o monstro é o capital, trata-se de fazê-lo falhar. Se é o mundo, trata-se de suscitar diferenças capazes de reconfigurar seus mecanismos de feedback, resultando em novos parâmetros de homeostase.
Aprendi com outres que agência é agenciamento: a capacidade de ação reside na aliança. Alianças são pontuais, processuais, imperfeitas e impermanentes. Isso não significa que seja apetitoso aliar-se a qualquer um — cruz credo, rs. Há compromissos e desejos que devem ser inegociáveis. Mas acredito que há muito mais comunicação por entre brechas e fissuras do que os juízos prévios conseguem perceber.
Prefiro a figura do idiota — dos russos, de Deleuze, de Stengers — à da polícia, reivindicada por Kant em sua “utilidade positiva” de “fechar a porta à violência que os cidadãos podem temer uns dos outros para que cada um possa tratar tranquila e seguramente dos seus interesses.” A experiência me ensinou que fechar portas frequentemente significa dá-las na cara de outros em nome de uns. É preciso cautela com a porta: há quem não deve entrar de forma alguma, mas há muitos cuja passagem é impedida por juízos apressados e autoritários.
Enquanto escrevia minha tese de doutorado, sentia-me num cômodo — a filosofia —, cujos portões cerrados barravam uma infinidade de seres que batiam contra eles e berravam, emitindo ondas sonoras em miríades de frequências, formas e tipos, com incontáveis aparelhos fonadores — e até mesmo sem eles. Sentia-me desconfortável por, estando dentro desse cômodo, ter (ou acreditar ter) acesso às chaves desses portões. Não desejo esse lugar de guarda. Naquele momento, minha vontade era arrebentar os portões, desfazer os muros que os sustentavam. Tocando, pela escrita, os cadeados desses portões que só se abrem para dentro, desejava desmontá-los — não para que outros entrassem, mas para que eu pudesse sair e estar com eles.
Ao inferno com a razão entronada, exigindo que se lhe prestem contas. A idiotia me serve. Já testemunhei o milagre que se apossa do corpo de alguns policiais e os faz abandonar seus postos, passando para o lado dos manifestantes — uma manifestação multinfestada. Quero a coragem estúpida e improdutiva de, diante do soberano, em vez de lhe prestar contas, exigir que me (ou nos) as preste, que “preste contas sobre ‘cada vítima da história’”, essa manifestação do Um, do um-espírito, do Um Anel.
(dedico este post ao meu amigo Jean, que me ajudou a ver muitas dessas coisas)