Francisco, o Sol, e o Parentesco
Cercada pela dor de uma multidão cujos corpos o poder avilta e rebaixa com fúria inaudita, ofereço um cântico criatural de louvor em múltiplas vozes.
Segunda-feira topei com a informação de que “O cântico das criaturas” é o texto poético mais antigo da literatura italiana do qual se conhece o autor. Talvez eu devesse sabê-lo, uma vez que, no mestrado, estudei um bocadinho de poesia provençal, Dante, Leopardi e Primo Levi. Quem sabe já tenha mesmo sabido e depois esquecido - assim como Deleuze, que o disse talvez mentindo, não guardo saber de reserva. Daí que corri ao texto original, donde agora retorno com notícias e um convite: que vocês me acompanhem em uma pequena viagem movida a energia solar pelos meandros da fabricação cósmica de parentesco.
Muito já se escreveu sobre a influência de Francisco sobre Dante, que lhe dedicou o canto XI do Paraíso na Divina Commedia. Lá, lemos que “nasceu ao mundo um Sol” [nacque al mondo un Sole], verso que dota a origem e natureza do poeta santo de um sabor místico-terrenal. Essa associação ao Sol era bastante comum nas fontes franciscanas; Bernardo da Bessa, por exemplo, em meados do XIII, abriu assim seu Livro de Louvores: “Como um Sol nascente, o bem-aventurado Francisco iluminou o mundo com sua vida, doutrina e milagres” [Quasi sol oriens mundo beatus Franciscus vita, doctrina et miraculis claruit]. No Paraíso, da primeira década do XIV, Dante abandona o quasi, que em latim significa “como se" ou “que nem" (algo aliás que enriquece o entendimento de “quase acontecimento", de Viveiros de Castro), e diz simplesmente “um Sol". E vai além: valendo-se da semelhança entre o nome da cidade Assis com a palavra ascesi - ascender, ainda que àquela altura não no sentido religioso -, acrescenta: “quem falar desse lugar/ Não diga Assis, pois diria pouco,/ Mas Oriente, se quiser ser preciso [chi d'esse loco fa parole,/ Non dica Ascesi, chè direbbe corto,/ Ma Oriente, se proprio dir vuole]. Francisco torna-se, desse modo, São Francisco do Oriente, Sol nascente em eterna aurora jamais completada.
Abro aqui uma nota para me explicar: se amo Francisco, é porque compartilho de seu amor pelo mundo material, por todas as coisas - cada uma diferente e todas elas criaturas. Como disse o querido Rondinelly, em Francisco encontramos “o Evangelho renovado, como boa notícia: o Reino de Deus é da Terra.” Não falarei aqui do entorno ou da figura histórica - para além de me faltar a competência, existe muita coisa a respeito.
Começo, então, por minha relação que, como a de muita gente brasileira, está ligada aos bichos. Ainda que eu tenha sido batizada na Igreja Católica, não cresci em família cristã e não sabia muito bem quem eram Deus e Jesus até ir pra escola. Quando pedi à mãe para fazer catecismo - todas as meninas faziam, e a Igreja ficava a poucas quadras de casa -, ela apenas respondeu: não. Na época, o currículo ainda contava com a disciplina de Educação Moral e Cívica, concebida na ditadura. Ali pela sexta-série, uma das lições no livro didático tratava de “religião” - cristianismo, claro. Partia-se direto do argumento do design, o famoso relógio desde o qual se deve inferir que há um relojoeiro. Muito curiosamente (na verdade não), tanto no livro como na aula, permanecia oculto o sentido da escolha, diante de tudo que existe, pelo relógio; ninguém especulava sobre o motivo da comparação entre organismos e máquinas, muito menos sobre o motivo de aceitarmos a comparação tão rapidamente. Enfim, do argumento do design seguiam-se três questões: i. quem somos, ii. de onde viemos e iii. para onde vamos. As respostas, muito simples e diretas, eram: i. criaturas de Deus, ii. de Deus e iii. voltaremos a Ele. Tornei à mãe e perguntei o que era aquilo. Ela disse que era besteira e que eu devia decorar, responder na prova e esquecer.
A única notícia que tinha de São Francisco àquela altura vinha da música interpretada por Ney Matogrosso em A arca de Noé. Eu era fã de Ney, meu primeiro LP foi seu álbum de 1981, em cuja capa fascinante a cabeça do artista funde-se a uma harpia. Em minha cabecinha infantil, por outra, foram o desenho de Vinicius de Moraes na capa de A Arca de Noé e a voz de Ney que se fundiram à ideia de Francisco.
Já adulta, aos 22 anos e morando com namorado, levei uma gatinha para viver conosco - o amor pelos gatos também aprendi com minha mãe. A bebê Berenice, que veio da SUIPA, estava doente e viveu só cinco dias. Algumas semanas depois chegou Eleonora, também filhote, também doente. Recorri a tudo que pude, das ciências modernas a pactos com o mundo mais-que-humano. Nora viveu - muitos anos - e, com seu restabelecimento, fez-me fazer doações a abrigos de animais e distribuir mil santinhos de Francisco. Desde então, passei a ter sua imagem em casa.
Só bem mais tarde é que fui enfeitiçada, por meio dos estudos, pelas histórias dessa figura revolucionária que enfrentou uma Igreja de extrema violência e, por um momento, a fez dobrar-se a ele. Contemporâneo dos massacres das Cruzadas, que vitimaram milhões fora e dentro da Europa, Francisco propunha respeito pelos muçulmanos e acordos de paz. Filho de comerciante, fez-se pobre e foi viver como pobre entre pobres, criticando a propriedade e o acúmulo. Compreendia as mulheres como companheiras espirituais; Clara, grande como ele, era por ele considerada uma igual.
O mundo material, cheio de corpos femininos e outros-que-humanos, não era, para Francisco, nem tentação nem corrupção, mas imagem divina. Saudava pássaros, devolvia peixes ao rio, dava vinho a abelhas no inverno. E falava com lobos. Conta-se que em Gubbio um lobo aterrorizava a cidade, e Francisco, em vez de exterminá-lo, fez um pacto com ele. Longe de ser uma fábula moral sobre domar a fera, a história guarda algo mais radical: um contrato de coabitação, um entendimento entre espécies. Amava as criaturas daqui, aqui, na Terra, porque as considerava todas do Céu.
Gosto de brincar, referindo-me a ele como santo pagão. Não me importam os argumentos em torno da fidelidade: Francisco é, para mim, um santo animista de um mundo todo vivo.
Em 1228, Tomás de Celano, já em hagiografia - isto é, em um gênero literário sancionado pela Igreja, mas ainda antes da grande reescrita domesticadora a que a vida de Francisco foi submetida -, contou que:
Quando encontrava uma abundância de flores, assim lhes dava a notícia do evangelho e as convidava ao louvor do Senhor, como se nelas vigorasse a razão. Da mesma forma, também aos campos de cereais e às vinhas, às pedras e às florestas, e a todas as coisas belas dos campos, às águas das fontes, e até ao verdor dos jardins, à terra e ao fogo, ao ar e ao vento […] Enfim, a todas as criaturas chamava por um nome fraterno e, de modo excelso e desconhecido aos demais, discernia as coisas ocultas das criaturas com a acuidade do coração (de Celano 1228: 1.29,81).
Um sol irmão de outro sol - e de tudo mais. Diante deste humano que se comunicava com bichos, realizando o mais íntimo desejo de Lévi-Strauss, passo finalmente ao cântico.
O poeta Guilherme Gontijo Flores dedicou sua tradução, de que me valho aqui, ao nascimento de seu segundo filho, em 2014. Faço eco a seu abre-alas, tão atual uma década depois, e peço licença:
até cercados pela dor do mundo, haverá – assim eu digo –
haverá espaço para um cântico.
Não reproduzirei o poema aqui, uma vez que seus versos são muito conhecidos e não pretendo comentá-lo em extensão nem intensidade. Gosto de pensar que sua força e persistência evidenciam a memória atávica que carregamos no corpo da infinita conexão e conectividade não apenas da vida, mas do universo (pluriverso) irmanado.
O processo de fabricação de parentesco por Francisco é também conectado: o Sol, de quem na República de Platão se conta ser “filhote da bondade”, “cria das coisas boas” [ἔκγονός τε τοῦ ἀγαθοῦ], torna-se, no Cântico, espécie de “face” ou imagem do deus [de te, Altissimo, porta significatione] de quem somos irmãos. A Terra, por sua vez, é feita parente de dois modos - como irmã e como mãe. Ou teria o santo criado um outro tipo de parente, irmã-mãe? Os versos “Nossa irmã mãe Terra/ que nos sustenta e governa” [sora nostra madre terra/ la quale ne sustenta et governa] me remeteram ainda a Tellus Mater, divindade romana que esteve em Roma antes de Terra e coabitou com ela, em fusão não perfeita.
Tenho me interessado muito por Tellus desde que conheci a Cia Teatral Ueinzz a convite da cineasta Mariana Lacerda, que estava filmando um documentário sobre o grupo e a feitura da peça Telúrica. Foi em Ueinzz que nasceu a ideia da Pax Telluris, a paz telúrica, por diferença à pax imperii. Mas essa é outra história.
Voltando à terra do sol-francisco nascente, no Cântico ela “nos sustenta” - sustentar aí tem o mesmo sentido que para nós de amparar, manter, aguentar, nutrir, quer dizer, prover a subsistência. Daí que me lembrei que, quando comecei a ler sobre Tellus, vi no dicionário etimológico Leiden que
A raiz pode ser PIE *telh₂-, que significa "carregar, sustentar",[…] De fato, as línguas itálicas mostram uma forma primitiva telne/o-, enquanto o latim tem tollo ("sustentar, erguer")[…] Assim, a Terra teria sido referida como "aquela que sustenta" ou "aquela que carrega" (talvez o céu, ou as criaturas e os objetos sobre ela) (2008: 608-609).
Em resumo, Tellus é aquela que sustenta o céu para que não desabe ao mesmo tempo que sustenta as criaturas em si, acolhendo-as para que não saiam voando espaço afora. Nossa irmã mãe terra, nome de uma deusa, leva Francisco, assim, a encontrar Davi Kopenawa por vias romanas.
Nesse momento, eu ia enveredar por referências ao clima, tornar ao sol e sua relação com o fogo, falar da catástrofe socioambiental e da relação entre desastre, catástrofe, astrologia, tragédia e eles mesmos, os bodes, e meu querido Fauno (haveria de ser Pã, mas Aleister Crowley e sua súcia andaram manchando o grande deus). O problema, é que, assim como a Leopardi, o naufragar me é dulcíssimo neste mar. Mas ainda não.
Pra terminar, então, uma última observação: Francisco agradece ao deus por “nossa irmã morte corporal/ da qual ninguém que vive pode escapar” [sora nostra morte corporale/ da la quale nullu homo vivente po’ scappare]. Vejam isso: nosso sol nascente faz parentesco até com a morte corporal. Ouso interpretar: não com a morte da morte - o insustentável, chatíssimo fim de tudo tão desejado por aí -, mas com a morte corporal, agente da metamorfose, da infinita transformação que conecta e desconecta inventando o novo, de novo e de novo.
Que dela não se possa escapar é especial, pois este verbo, escapar, scappare, é literalmente “tirar a capa”, despistar aquele que persegue ao permitir que agarre apenas um manto vazio. Se não é possível escapar da morte, portanto, sair correndo e deixar que meta as mãos só numa capa solta, é porque o corpo é o próprio manto. Um corpo, roupa ou vestimenta. Nu em pelo, Francisco encontra os Kwakiutl (Kwakwaka'wakw):
Os animais se declaram como pessoas vestindo roupas de animais (Boas 1895:169). Assim, eles são parentes da humanidade em termos genéricos, bem como fundadores totêmicos específicos de linhagens. Embora ligados por uma humanidade comum, animais e humanos habitam domínios separados, e suas conexões não são imediatamente evidentes. Cabras montanhesas, por exemplo, precisam informar a um caçador que são pessoas. Outros animais, que habitualmente retiram suas roupas de animal ao chegarem em casa, sentem-se constrangidos quando surpreendidos por humanos em seu estado "despido" […] Sua existência animal reside em sua superfície externa removível, sua pele. Uma cabra montanhesa dá sua pele a um homem, permitindo que ele cace sua espécie com sucesso - uma versão do próprio animal se doando ao homem. Da mesma forma, como já observei antes, os animais removem suas peles quando buscam poder sobrenatural, mergulhando em águas profundas e frescas […] (GOLDMAN 1978: 182-183).
Após essa profanação, despeço-me por ora, repetindo mais uma vez Gontijo: “até cercados pela dor do mundo, haverá – assim eu digo – haverá espaço para um cântico.”
Cito Rondinelly, mais uma vez:
Me ocorreu agora que Francisco era filho de burgueses enriquecidos, e era a época do início do renascimento urbano e comercial, o momento em que a Cristandade dava seus primeiros passos rumo ao capitalismo. Ali surge o evangelho da terra de Francisco, como uma oferta singela de um caminho alternativo, de salvação, de dentro do bojo daquela cultura, oferta até melancólica de tão impossível, para as classes emergentes de então, porque ofertava a renúncia a todo esse caminho de ganância, acúmulo e destruição. Em vez do lucro, a Criação, em vez de commodities, as criaturas...
Louvados sejam, meus parentes, cada um de vocês, pelos cânticos que aliviam nossas peles em momentos de dor.
E que jamais nos esqueçamos: “onça é meu parente.” Lobo também.
Muito emocionante esse texto. Uma questão de teologia pagã: será que podemos tomar a expressão Cântico das criaturas como genitivo subjetivo e objetivo - não apenas o cântico para as criaturas, mas o cântico que as criaturas cantam? Se sim, será o mundo um cântico que as criaturas estão sempre ensaiando, e a cada voz que surge e se diferencia, mais volume e harmonia tem o cântico, e a cada voz que se cala, menos mundo cantado?